Morte da Europa Social?
A história da Europa dependerá de como ela lidar com esta crise; se segue o curso pacífico do benefício mútuo e prosperidade económica tão apreciados nos manuais de ciência económica, ou se segue a espiral baixista da austeridade, que tanto tem tornado impopulares os estrategas do FMI, nas economias devedoras. É nesse barco que a Europa embarcará? Esse é o destino do projecto de uma Europa social, de Jacques Delors? É isso o que os cidadãos da Europa esperavam, quando adoptaram o euro? Há uma alternativa, nem é preciso dizer. É que os credores do cume da pirâmide económica arquem com as perdas.
“Sejam como a Letónia!”, gritam os banqueiros e a mídia financeira aos governos da Grécia, da Irlanda e agora, também, de Portugal e Espanha. “Por que não ser como a Letónia e sacrificar a vossa economia para pagar as dívidas que contraístes durante a bolha financeira?”. A resposta é que não podem fazê-lo sem sofrer um colapso económico, demográfico e político que piorará ainda mais as coisas.
Faz só há um ano que se reconheceu que várias décadas de neoliberalismo tinham destruído a economia estadunidense e a de muitos países europeus. Anos de desregulação, de especulação e de falta de investimento na economia real deixaram-nos com uma desigualdade crescente e com uma procura magra de consumo, salvo a financiada incorrendo em dívida. Mas a imprensa financeira e os decisores políticas neoliberais contra-atacaram servindo-se dos “Tigres Bálticos” como aríete paradigmático contra as políticas keynesianas de despesa e contra o modelo da Europa social sonhado por Jacques Delors.
O crescimento de 3,3% previsto para a Letônia em 2011 relata-se como prova adicional do êxito de um modelo de austeridade que teria estabilizado tanto a sua crise da dívida como o seu défice comercial crónico, financiado com empréstimos hipotecários em moeda estrangeira. Dado que o PIB caiu 25% durante a crise, com tamanha taxa de crescimento levaria uma década inteira só para recuperar as dimensões da economia letã de 2007.
A despeito dos seus resultados económicos e sociais desastrosos, o certo é que o trauma neoliberal letão é idealizado pela imprensa financeira e pelos políticos neoliberais, a fim de impor austeridade às suas próprias economias. Antes da crise global de 2008, os “Tigres Bálticos” eram celebrados como a vanguarda das economias do livre mercado da Nova Europa. Os críticos desse “milagre” económico – fundado em empréstimos em moeda estrangeira para financiar a especulação com propriedades e a aquisição de bens públicos em processo de privatização – foram menosprezados e depreciados como cépticos obstinados. E agora, sem perder a arrogãncia, os comentaristas de ocasião cometem a insolência de nos oferecer a opção letã pela austeridade como uma política exemplar para outras nações.
Dada a proximidade entre a Letônia e a Bielorrússia, é ilustrativo comparar o modo como os neoliberais avaliaram as suas economias. A Letônia sofreu o pior colapso económico europeu em 2008 e 2009, com um continuado desemprego na casa de dois dígitos. A sua economia não tem crescido até agora (2011) e o mais provável é que o modesto crescimento experimentado siga acompanhado de uma taxa de desemprego de dois dígitos. Uma fracção enorme da sua população emigrou do país, deixando para trás crianças ao cuidado dos avós, senão sozinhos.
A vizinha Bielorrússia, que conta com poucas vantagens geográficas letãs (portos e costas), tem um PIB não muito menor que o da Letónia. A Bielorrússia experimentou um auge económico com taxas de crescimento de dois dígitos antes da crise e manteve a sua economia em pleno emprego durante a crise, muito longe do colapso de 25% que desorganizou a Letónia. A Bielorrússia tem também um coeficiente de Gini (índice que mede a desigualdade) próximo ao da Suécia, enquanto a Letónia se aproxima mais dos níveis crescentes de desigualdade que caracterizam no momento os EUA.
E no entanto, a Letónia é declarada um sucesso e a Bielorrússia, um fracasso. O World Factbook da CIA recorda aos seus leitores que o bom crescimento económico bielorrusso ocorreu “apesar dos obstáculos de uma economia inflexível centralmente dirigida”. Tal é a caracterização corrente da Bielorrússia. Mas o que haveria de se perguntar é se o que seu êxito reflecte não são precisamente as virtudes da sua planificação central. A Letónia gerou maior liberdade política para os seus dissidentes, mas a Bielorrússia tem menos desigualdade económica e dívida externa menor.
Não estamos culpando a nação letã pelas cruéis experiências de políticas neoliberais a que está sendo submetida; o que está em questão é a comunidade global dos mandatários políticos, de intelectuais e de parte das próprias elites letãs: sua persistência em prosseguir nessa política fracassada e ainda recomendá-la a outros países como via para o crescimento económico (quando do que se trata é de um suicídio económico e demográfico). O povo letão sofreu as consequências devastadoras das duas guerras mundiais e de duas ocupações, o que o neoliberalismo veio coroar com o desmantelamento da sua indústria e o aprofundamento cada vez maior da dívida – em moeda estrangeira! – desde a conquista da sua independência, em 1994. O neoliberalismo gerou uma pobreza tão profunda que causou um êxodo de proporções bíblicas ao exterior. Chamar a isso de um passo económico adiante e uma vitória da razão económica não pode menos que recordar a caracterização das vitórias militares imperiais romanas que Tácito pôs na boca do líder celta Calgacus, antes da Batalha de Monte Graupius: “Desertificam e chamam a isso de paz”.
Os banqueiros e a imprensa financeira pintam este programa de austeridade desenhado para poder pagar aos bancos como um caminho para o futuro. O que dista em muito da realidade. Porque a realidade crua é que tal programa afunda esses países numa maré de títulos de dívida nas mãos de credores que nunca se preocuparam muito com a forma como as economias bálticas poderiam pagar. E pagar, é o caso dizê-lo, encolhendo a economia, emigrando e esmagando ainda mais implacavelmente os trabalhadores.
A carga fiscal gravita muito mais pesadamente sobre o emprego que na Europa ocidental de sessenta anos atrás, no período da sua reconstrução. Os negócios com a informação interna privilegiada e a fraude financeira estenderam-se a todo o lado. E o pior de tudo: os bancos simplesmente emprestavam para a compra de imóveis e infra-estruturas já existentes, em vez de financiar o incremento da produção e a formação de capital tangível. À diferença das subvenções de governo a governo do Plano Marshall, a política do Banco Central Europeu de centrar os empréstimos bancários comerciais produziu uma única coisa: uma bolha imobiliária.
O problema é que a União Europeia via os seus novos membros como mercados para os bancos e os exportadores (o que incluía também vê-los como base de dumping e de preços predatórios para os seus excedentes agrícolas), não como novos membros que necessitavam de ajuda para se tornarem economicamente sustentáveis, nem tampouco como países em que se pudesse erguer sistemas financeiros nacionais viáveis por si mesmos.
A grande questão: afundar a própria economia para pagar a dívida a uns bancos que foram irresponsáveis ou carregar a banca com perdas e salvar a prosperidade e uma igualdade social mínima.
Dadas as restrições que o euro impõe aos seus países membros, compreende-se que as nações e os bancos credores da União Europeia queiram resolver esta crise com uma “desvalorização interna”: salários mais baixos, menos despesa pública e queda dos níveis de vida, quer dizer, medidas que possibilitem o pagamento da dívida. É a velha doutrina do FMI que fracassou estridentemente no Terceiro Mundo. Dir-se-ia que esta doutrina está em pleno processo de ressurreição na Europa.
“Sejam como a Letónia!”, gritam os banqueiros e a mídia financeira aos governos da Grécia, da Irlanda e agora, também, de Portugal e Espanha. “Por que não ser como a Letónia e sacrificar a vossa economia para pagar as dívidas que contraístes durante a bolha financeira?”. A resposta é que não podem fazê-lo sem sofrer um colapso económico, demográfico e político que piorará ainda mais as coisas.
Faz só há um ano que se reconheceu que várias décadas de neoliberalismo tinham destruído a economia estadunidense e a de muitos países europeus. Anos de desregulação, de especulação e de falta de investimento na economia real deixaram-nos com uma desigualdade crescente e com uma procura magra de consumo, salvo a financiada incorrendo em dívida. Mas a imprensa financeira e os decisores políticas neoliberais contra-atacaram servindo-se dos “Tigres Bálticos” como aríete paradigmático contra as políticas keynesianas de despesa e contra o modelo da Europa social sonhado por Jacques Delors.
O crescimento de 3,3% previsto para a Letônia em 2011 relata-se como prova adicional do êxito de um modelo de austeridade que teria estabilizado tanto a sua crise da dívida como o seu défice comercial crónico, financiado com empréstimos hipotecários em moeda estrangeira. Dado que o PIB caiu 25% durante a crise, com tamanha taxa de crescimento levaria uma década inteira só para recuperar as dimensões da economia letã de 2007.
A despeito dos seus resultados económicos e sociais desastrosos, o certo é que o trauma neoliberal letão é idealizado pela imprensa financeira e pelos políticos neoliberais, a fim de impor austeridade às suas próprias economias. Antes da crise global de 2008, os “Tigres Bálticos” eram celebrados como a vanguarda das economias do livre mercado da Nova Europa. Os críticos desse “milagre” económico – fundado em empréstimos em moeda estrangeira para financiar a especulação com propriedades e a aquisição de bens públicos em processo de privatização – foram menosprezados e depreciados como cépticos obstinados. E agora, sem perder a arrogãncia, os comentaristas de ocasião cometem a insolência de nos oferecer a opção letã pela austeridade como uma política exemplar para outras nações.
Dada a proximidade entre a Letônia e a Bielorrússia, é ilustrativo comparar o modo como os neoliberais avaliaram as suas economias. A Letônia sofreu o pior colapso económico europeu em 2008 e 2009, com um continuado desemprego na casa de dois dígitos. A sua economia não tem crescido até agora (2011) e o mais provável é que o modesto crescimento experimentado siga acompanhado de uma taxa de desemprego de dois dígitos. Uma fracção enorme da sua população emigrou do país, deixando para trás crianças ao cuidado dos avós, senão sozinhos.
A vizinha Bielorrússia, que conta com poucas vantagens geográficas letãs (portos e costas), tem um PIB não muito menor que o da Letónia. A Bielorrússia experimentou um auge económico com taxas de crescimento de dois dígitos antes da crise e manteve a sua economia em pleno emprego durante a crise, muito longe do colapso de 25% que desorganizou a Letónia. A Bielorrússia tem também um coeficiente de Gini (índice que mede a desigualdade) próximo ao da Suécia, enquanto a Letónia se aproxima mais dos níveis crescentes de desigualdade que caracterizam no momento os EUA.
E no entanto, a Letónia é declarada um sucesso e a Bielorrússia, um fracasso. O World Factbook da CIA recorda aos seus leitores que o bom crescimento económico bielorrusso ocorreu “apesar dos obstáculos de uma economia inflexível centralmente dirigida”. Tal é a caracterização corrente da Bielorrússia. Mas o que haveria de se perguntar é se o que seu êxito reflecte não são precisamente as virtudes da sua planificação central. A Letónia gerou maior liberdade política para os seus dissidentes, mas a Bielorrússia tem menos desigualdade económica e dívida externa menor.
Não estamos culpando a nação letã pelas cruéis experiências de políticas neoliberais a que está sendo submetida; o que está em questão é a comunidade global dos mandatários políticos, de intelectuais e de parte das próprias elites letãs: sua persistência em prosseguir nessa política fracassada e ainda recomendá-la a outros países como via para o crescimento económico (quando do que se trata é de um suicídio económico e demográfico). O povo letão sofreu as consequências devastadoras das duas guerras mundiais e de duas ocupações, o que o neoliberalismo veio coroar com o desmantelamento da sua indústria e o aprofundamento cada vez maior da dívida – em moeda estrangeira! – desde a conquista da sua independência, em 1994. O neoliberalismo gerou uma pobreza tão profunda que causou um êxodo de proporções bíblicas ao exterior. Chamar a isso de um passo económico adiante e uma vitória da razão económica não pode menos que recordar a caracterização das vitórias militares imperiais romanas que Tácito pôs na boca do líder celta Calgacus, antes da Batalha de Monte Graupius: “Desertificam e chamam a isso de paz”.
Os banqueiros e a imprensa financeira pintam este programa de austeridade desenhado para poder pagar aos bancos como um caminho para o futuro. O que dista em muito da realidade. Porque a realidade crua é que tal programa afunda esses países numa maré de títulos de dívida nas mãos de credores que nunca se preocuparam muito com a forma como as economias bálticas poderiam pagar. E pagar, é o caso dizê-lo, encolhendo a economia, emigrando e esmagando ainda mais implacavelmente os trabalhadores.
A carga fiscal gravita muito mais pesadamente sobre o emprego que na Europa ocidental de sessenta anos atrás, no período da sua reconstrução. Os negócios com a informação interna privilegiada e a fraude financeira estenderam-se a todo o lado. E o pior de tudo: os bancos simplesmente emprestavam para a compra de imóveis e infra-estruturas já existentes, em vez de financiar o incremento da produção e a formação de capital tangível. À diferença das subvenções de governo a governo do Plano Marshall, a política do Banco Central Europeu de centrar os empréstimos bancários comerciais produziu uma única coisa: uma bolha imobiliária.
O problema é que a União Europeia via os seus novos membros como mercados para os bancos e os exportadores (o que incluía também vê-los como base de dumping e de preços predatórios para os seus excedentes agrícolas), não como novos membros que necessitavam de ajuda para se tornarem economicamente sustentáveis, nem tampouco como países em que se pudesse erguer sistemas financeiros nacionais viáveis por si mesmos.
A grande questão: afundar a própria economia para pagar a dívida a uns bancos que foram irresponsáveis ou carregar a banca com perdas e salvar a prosperidade e uma igualdade social mínima.
Dadas as restrições que o euro impõe aos seus países membros, compreende-se que as nações e os bancos credores da União Europeia queiram resolver esta crise com uma “desvalorização interna”: salários mais baixos, menos despesa pública e queda dos níveis de vida, quer dizer, medidas que possibilitem o pagamento da dívida. É a velha doutrina do FMI que fracassou estridentemente no Terceiro Mundo. Dir-se-ia que esta doutrina está em pleno processo de ressurreição na Europa.
Michael Hudson e Jeffrey Sommers – SinPermiso
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Marcadores: europa social, neoliberalismo
2 Comments:
Estamos lixados é o que é......
Esta velha táctica usada pelas potências do costume ....deixa os tristes pobretanas entreterem-s com a fome ....e miséria....pode dar mau resultado...
O que é que a gente tem a ver com a Letónia...??...não me explicam...??
Isto há cada um....como é que é possível deixar andar por aí à solta uns certos teóricos... sem vergonha nenhuma....armados em donos do Mundo....com as suas lembranças nocturnas...!!??
Eles no fundo só querem umas avençazitas e... vender uns livritos...
...só que com isso lixam a vida a milhões....
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