segunda-feira, dezembro 08, 2014

As "chamas do inferno"

Soam os alarmes sempre que alguém se atreve a formular um programa para mudar o actual estado da realidade económica. Os comentaristas oficiosos dividem-se entre o desprezo, a ameaça e o medo. Mas a maioria dos argumentos podem resumir-se numa profecia: se alguém se atreve a colocar em dúvida a ordem estabelecida, cairá uma praga maligna sobre todos nós.
O crescimento da miséria, a pobreza infantil, a brecha entre ricos e pobres, a crueldade dos despejos, a liquidação dos serviços públicos e a destruição do mundo do trabalho geraram uma exploração a níveis deploráveis. A catástrofe é agora. Tornam-se cúmplices dela quem tenta manter a ordem estabelecida à custa de injectar medo na sociedade e de profetizar as chamas do inferno a cada momento em que que os políticos se atrevem a fazer mudanças.
Durante séculos, a ameaça proferida do poder foi o inferno. Quando alguém tentava pensar e actuar de maneira distinta daquela estabelecida pela hierarquia, centenas de ministros e sacerdotes ameaçavam-no com o castigo de Deus. Os que ameaçavam com o inferno não ofereciam a perspectiva do amor, mas o pânico de um poder terrível capaz de nos torturar.
Agora acontece o mesmo com as superstições económicas. Esta ordem é miserável, desigual, injusta, homicida, egoísta, cruel (aí estão os dados), mas, se vocês tentarem mudá-la serão perseguidos pelos mercados ou pelo Banco Central Europeu. Muitos dos autores dos sermões modernos mostram-se orgulhosos de serem sacerdotes de um sistema explorador. Em nome de um deus terrível, desprezam as medidas propostas pelos economistas dispostos a mudar as coisas.
 As catástrofes que eles anunciam são a melhor prova de que estes sacerdotes do neoliberalismo servem um canalha: um capitalismo selvagem.
É preciso perder o medo a qualquer senhor que nos ameace com os grandes castigos do seu inferno se decidimos contrariá-lo. Mercados e grandes fortunas dizem: como você não deixa que a gente continue a explorar-te, vamos castigar-te de forma cruel. Somos regidos pelo senso comum de ladrões de bairro, de chantagistas mafiosos.
 
  Luis García Montero  é uma das principais figuras da atual poesia espanhola. É colunista regular do Público.es (ver em cartamaior o texto completo)