quinta-feira, maio 31, 2012

A falsa crise das dívidas públicas


Todos os dados mostram que as políticas de austeridade que promoveram cortes do consumo público (incluindo o consumo público social) e a redução dos salários – a chamada desvalorização doméstica - têm sido um fracasso, e têm criado um enorme dano às classes populares. A pergunta que devemos fazer é ¿por quê, então, se a evidência do seu fracasso é tão flagrante, continuam impondo-a às populações dos países da Eurozona? Uma resposta poderia ser que os arquitectos de tais políticas é gente incompetente. É certo que há um grande número de executivos que assessoreiam as autoridades que tomam as decisões conducentes à aplicação daquelas políticas de austeridade que são claramente incompetentes. As previsões de recuperação das economias da Eurozona são um exemplo disso. Mark Weisbrot, do Center for Economic and Policy Research (CEPR), documentou o cálculo erróneo de tais previsões por parte do FMI, do BCE e da Comissão Europeia.
Ora bem, o problema é muito maior que a incompetência. É um problema de fé num dogma, o dogma neoliberal, que embebe tais instituições e que se reproduz devido a que serve interesses muito específicos, interesses de classe (sim, de classe social), tanto financeira como empresarial, que arquitectaram um sistema de governação da Eurozona que conduz inevitavelmente a estes resultados, resultados que coincidem com os seus objectivos, que não são outros que mudar a Europa, convertendo a Europa social na Europa liberal. E, para o conseguir e vencer as resistências populares, criaram uma grande recessão, impondo tais políticas (impondo porque não há nenhum governo que as aplique que tivesse tais políticas no seu programa eleitoral) com o argumento de que não há alternativas. Na realidade, tal objectivo aparece claramente nas declarações do Sr. Draghi ao Wall Street Journal (24.02.12), onde afirma que a Europa social está desaparecendo, referindo-se a Espanha como um exemplo. Indica na sua entrevista que em Espanha, com uma taxa de desemprego juvenil superior a 50%, já não existe protecção social universal (o governo PP anulou a universalidade do sistema nacional de saúde, de maneira que as pessoas de mais de 26 anos não têm garantida a cobertura de saúde a não ser que ajam descontado para a Segurança Social). Isto é o que pretendem, e estão conseguindo-o. É o que Noam Chomsky chamou a guerra de classes unidireccional.
Os instrumentos para consegui-lo são dois. Um é o Pacto de Estabilidade (ao qual se acrescentou o termo “Crescimento”, a proposta do governo socialista francês do Sr. Jospin, sem que se o dotasse de instrumentos para facilitar tal crescimento) que força os Estados a terem um défice público inferior a 3% do PIB e que dificulta enormemente a recuperação económica em momentos de recessão, como está ocorrendo agora. Daí que quando há una recessão, o Estado corta nos consumos públicos, incluindo o consumo público social, a fim de reduzir o défice público originado pela redução de receitas do Estado como consequência da recessão. A recessão é, pois, uma maneira de forçar o desmantelamento da Europa social (através de uma redução da protecção social e dos salários). Impõe-se um Pacto fiscal, em que o défice público em lugar de 3% do PIB (como se exigia até aqui) terá que ser praticamente zero (sim, leu bem, zero). Isto é um ataque frontal à Europa Social e à possibilidade de sair da recessão.
O outro instrumento que se criou para eliminar a Europa social é o Banco Central Europeu que, em realidade, não é um banco central. Esta afirmação surpreenderá muita gente, mas os factos assim o demonstram. Um banco central imprime dinheiro, e com este dinheiro ajuda o Estado comprando-lhe dívida pública, mantendo assim os juros das suas obrigações de tesouro relativamente baixos. Protege assim o Estado frente à especulação dos mercados financeiros sobre a sua dívida pública. Na ausência de tal protecção, os mercados financeiros (sobre todo os bancos e as companhias de seguros) especulam com a dívida pública, criando a percepção de que os Estados têm problemas para pagarem as suas dívidas, forçando assim à subida dos juros nas suas obrigações de tesouro. Se houvesse um banco central, este banco central imprimiria dinheiro e compraria dívida pública do Estado baixando assim os juros das obrigações e impedindo a especulação por parte da banca privada (os chamados mercados financeiros).
Pois bem, o Banco Central Europeu não faz isto. É verdade que imprime dinheiro, mas oferece-o (a um juro baixíssimo, de 1%) aos bancos privados para que comprem dívida pública (a juros muito mais elevados, a 6% no caso dos bonos públicos espanhóis). É um enorme negócio para a banca à custa dos Estados. E aí reside o problema. Sem um Banco Central que os proteja, os Estados estão totalmente expostos à especulação. Não são os mercados financeiros o problema, senão a ausência de um Banco Central, coisa que está desenhada desta maneira para debilitar os Estados a fim de que tenham que reduzir o seu consumo público e a sua protecção social e facilitar a diminuição dos salários.
Diz-se que o Banco Central Europeu não pode comprar dívida pública. Isso responde à lógica do que acabo de explicar. Mas há que saber que o BCE o faz em condições excepcionais, quando o Estado está a ponto de quebrar e não pode pagar a sua dívida pública, como consequência de não estar protegido frente aos mercados financeiros. Quando está prestes a colapsar, o BCE intervém então, comprando dívida pública para que baixe os juros da mesma. Com isso evita que o Estado colapse e os bancos possam estar defendidos com a grande quantidade de dívida pública em sua posse e que não poderiam recuperar em caso de colapso do Estado. É como se houvesse uma sanguessuga que chupa o sangue do corpo e que, como resultado disso, a pessoa se encontrasse prestes a morrer e lhe injectassem então sangue para que pudesse continuar vivendo e assim a sanguessuga pudesse continuar chupando-lhe o sangue.
Ora bem, quando o BCE compra dívida pública ao Estado, exige-lhe como condição que desmantele o seu Estado social, quer dizer, que corte na protecção social e baixe os salários. Esta é a realidade que se oculta à cidadania nos meios de comunicação social. O problema não reside nos mercados financeiros, como constantemente acentuam grande parte das esquerdas, senão no próprio edifício monetário do euro, que deixa os Estados totalmente vulneráveis, o que constitui o objectivo da avalanche neoliberal.